
Mortal somos todos nós! A AIDS surgiu nos anos 80 como uma doença mortal e sem cura. Um vírus, transmitido pela relação sexual ou pelo sangue, entrava no sistema imunitário e protegido, por estar dentro dele, o destruía de forma inexorável, deixando suas vítimas expostas a todo tipo de doenças que, em última análise, determinavam numa morte rápida, trágica e sem remédio.
Associando sexo e morte, a AIDS transformou-se na bomba do século vinte, que pretendia haver liberado o sexo e estar anulando gradualmente a morte. De repente, a ciência estava impotente diante de um vírus e a morte era de novo inevitável. O conhecimento inicial sobre a AIDS definiu uma teoria de que não havia possibilidade de cura, era uma doença incurável. Toda pessoa afetada, tocada, atingida pelo vírus HIV estava duplamente condenada. Primeiro, a morrer como todas as pessoas e segundo, a morrer muito mais rápida e tragicamente do que todas as demais, como se pudesse haver uma dose dupla de morte para uma única pessoa. Esse nascimento trágico determinou até agora as atitudes básicas diante da AIDS: o medo, a impotência, a fuga, a clandestinidade, a omissão, o terror e o abandono. Na contramão, vieram os que lutaram contra o preconceito e o pânico e pregavam a solidariedade como o único remédio disponível para curar os terrores de tal epidemia. Mas vinham também com a idéia da morte nas mãos.
As pessoas afetadas pelo vírus se viram diante do trágico e não de uma doença. Os cientistas se viram diante da impotência da cura e não do desafio da descoberta que tem que inventar caminhos. Os governos praticaram o terrorismo e incorporaram todos os preconceitos que a sociedade inspirava, decretando, na maioria dos casos, a morte civil dos portadores do vírus fatal. Diante de uma epidemia fatal, que atacava homossexuais, drogados e hemofílicos, os governos optaram por tentar proteger - através de campanhas terroristas - aqueles que não tinham sido contaminados e deixar no abandono as "minorias" que já haviam sido tocadas pela fatalidade, cuja via era o sexo promíscuo ou o sangue contaminado e cujo destino era a morte. Os hemofílicos eram as vítimas inocentes de uma tragédia onde os verdadeiros culpados, os promíscuos sexuais e os drogados, pagariam com a morte em conseqüência de seus próprios atos. O vírus da AIDS era uma espécie de guilhotina que caía sobre a cabeça dos culpados. Muita gente tomou carona no vírus para propagar suas idéias, valores e preconceitos.
Dez anos se passaram. Muita coisa mudou e não passou ao conhecimento do público, outras continuam iguais apesar de todas essas mudanças. O conhecimento científico trabalha hoje com a idéia da possibilidade da cura ou controle da doença: foram criados remédios que controlam o desenvolvimento do vírus (AZT), os virostáticos, e estão sendo pesquisados remédios que poderão destruir o próprio vírus, os viricidas. Cerca de 11 tipos de vacinas estão sendo testadas, o que poderia abrir a porta para a prevenção em massa das populações não afetadas e para o controle da doença nas pessoas já atingidas. As pessoas infectadas pelo vírus, os soropositivos, que, no princípio se pensava, podiam viver somente alguns poucos anos, têm hoje uma expectativa média de vida, sem o desenvolvimento da doença, da ordem de 9 a 10 anos, e admite-se até que uma porcentagem delas possa não desenvolver a doença. No campo da clínica médica, o monitoramento dos soropositivos e o tratamento das pessoas com AIDS foram passos importantes para prolongar e melhorar a qualidade de vida das pessoas. Em muitos países, não no Brasil, a qualidade das campanhas educativas vai produzindo efeitos, contribuindo para a modificação de hábitos que ajudam na prevenção. A idéia dos grupos de risco, que servia para isolar e discriminar as vítimas, foi abandonada. Fala-se hoje em comportamentos de risco e sabe-se que, em tese, todas as pessoas podem vir a serem afetadas pela epidemia: heterossexuais, bissexuais, homossexuais, homens, mulheres de todas as idades.
A mais importante de todas as mudanças, no entanto, é que hoje se pode dizer que a AIDS ainda não tem cura, mas poderá ter. Que a AIDS é curável e que a cura ou o controle da doença é uma questão de tempo. Uma pessoa infectada hoje pelo vírus pode organizar sua vida na expectativa de viver uma década em condições de normalidade, tempo talvez suficiente para que se anuncie a cura definitiva da doença. Acabar com o mito da fatalidade da AIDS é absolutamente necessário para que possamos mudar os comportamentos e as atitudes das pessoas e dos governos. É necessário ver a AIDS como uma doença que poderá ser curada, tratada e controlada e não como morte imediata e inelutável. No caldo de cultura do terror e do fatalismo, não há mudança possível. As pessoas continuarão a contaminar seus parceiros ou parceiras. As pessoas que ainda não foram contaminadas não estarão dispostas a se confrontar com algo que não tem saída, nem salvação. Do terror das campanhas se foge. Da fatalidade se tenta escapar. Qualquer racionalidade é vista como absurda ou como heroísmo sem futuro. É necessário comunicar a toda a sociedade que a ciência avançou e avança e que os dias da AIDS estão contados. A esperança não é um ato de irracionalidade, é uma esperança que anda de braços dados com a vida e com a solidariedade.
Viver sob o signo da morte não é viver. Se a morte é inelutável, o importante é saber viver, e para isso é importante reduzir o vírus da AIDS à sua real dimensão: um desafio a ser vencido. É fundamental, portanto, reafirmar que esse vírus não é mortal. Mortais somos todos nós. Isso sim é o inelutável e faz parte da vida.
(Dedico este artigo a Herbert Daniel, aquele que sempre esteve e está ao lado da vida).

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