
Sentei-me na cadeira de balanço com uma foto sua sorrindo para mim e começamos a conversar sobre os meninos que você não viu crescer, sobre o tempo que passou rápido demais, nos deixando cada vez mais distantes, sobre a sua morte nua e crua que o tornou para sempre imortal dentro de mim ! E com uma xícara de chá apoiada no colo, decidi lhe contar uma história... A nossa história ; um fragmento da vida repleta de momentos expressivos, fortes e capazes de despertar emoções, sempre com a alma aberta feito uma janela que recebe todas as horas do dia, as quatro estações do ano e as cores do céu... A nossa história encantada, de amor e ódio. Aquela que você não participou, nunca conheceu e talvez nem se lembre mais...
Eu era uma menininha simples, cujo maior sonho se resumia em possuir uma casa com quarto e sala, onde pudesse ajeitar muitos quadros de parede, só para receber os amigos do colégio. Aonde não precisasse esquentar a água no balde para se tomar um banho gostoso, pendurando a bacia atrás da porta para que ninguém percebesse que não tínhamos chuveiro.
Com as tranças caídas nos ombros, observava os móveis antigos descer do caminhão sob o comando enérgico do meu pai, que empilhava nosso armário azul turquesa ao lado da máquina de costura.A televisão, do tamanho de uma caixa de sapatos, não tinha cor, mas fazia um sucesso quando pregávamos uma palhinha de aço na antena!O difícil mesmo seria pagar o aluguel porque o salário de um porteiro de gráfica fazia com que minha mãe varasse a noite pregando botão, alinhavando e muitas vezes chorando de raiva, quando nada dava certo!Tínhamos jeito de pobres, com nossos guarda-chuvas embaixo dos braços, mesmo quando fazia sol de empipocar o couro.NÃO achávamos graça em piada alguma,não gostávamos de música, de novela, de papo furado.
Durante a semana não tinha carne e muito menos refrigerante.Apenas sopa de legumes e ovo...Ovo frito, cozido e misturado com farinha de mandioca, pra dar consistência .Mas tudo seria por uma causa justa, aliás, justíssima!E já no domingo as tias embonecada chegariam pra conhecer a nossa casa nova.Tinha apenas dois cômodos que para mim eram os maiores do mundo inteiro, pois me perdia dentro deles com meus sonhos infinitos...
Rua FRANCISCO RETTI – MOÓCA – Lá os cachorros latiam todos ao mesmo tempo e as gargalhadas que surgiam se misturavam com o buzinar do tio do sorvete...Parecia uma rua encantada com uma magia vinda de todos os muros e postes, onde o sol fazia arder a pele das meninas e meninos que infernizavam a vizinhança com brincadeiras abobadas.
Deveria ser verão o ano inteiro e a temperatura fervia dentro do meu corpo, apoiado num caixote de madeira.
De repente seus olhos se perderam dentro dos meus e me senti preenchida, como que se houvesse encontrado uma outra parte de mim.E o tempo parou naquele instante...Era dois de janeiro de 1980 e parecia que nos conhecíamos antes mesmo de nascermos.Foi apenas um reencontro e eu já era a sua mulher.
Você deveria ter seus dezoito anos, retratando muita paz, saúde e uma energia capaz de lhe transformar numa criança adorável, que gostava de jogar taco e dirigir o FORD verde musgo . Depois fechava a fábrica de estopa do pai com uma pipa colorida debaixo do braço, se perdendo no meio da molecada.
E eu tinha apenas onze anos, jogava bolinha de gude na rua , usava um boné descorado e dançava com o cabo da vassoura, mas quando chegava à noitinha rolava na cama imaginando como seria bom ser sua ...Sua qualquer coisa; amiga ou inimiga, desde que se lembrasse de mim.Mas existia um abismo entre nós; enquanto eu era a brega da rua , você era filho de um empresário bem sucedido e tinha tudo de lindo, inclusive uma alegria interior que se expandia pelo corpo, pela pele, pela alma... finalizando num sorriso danado de bom .
_ Bom-giorno Madalena, Suzete, Quiririna...
Bom giorno Manollo, Vithé e dona Pina!
Era assim que gritava com um fardo de retalho na cabeça, distribuindo bala de goma enquanto a criançada trepava na carroceria do caminhão.
Não existia um lugar assim com tanta rima e as pessoas se encaixavam formando uma extensa família, sem limites.Jogávamos tômbola, fazíamos bingo e todos participavam de uma festa conjunta entre risos e brincadeiras, como que fossemos eternos.
Então jurei pra mim mesma que o teria comigo, iluminando o meu caminho para sempre...
Armei um plano, dois, um milhão de planos. Precisava que me enxergasse além do boné tingido e das meias remendadas.Queria crescer rápido, me transformar numa mulher boazuda e me casar com você numa manhã de sábado.E você me prometeu que seria o meu único homem...
Escrevi a lista de todos os convidados no meu diário secreto, escondendo debaixo do travesseiro e me empipocava toda só de pensar que alguém poderia descobrir o meu grande segredo.Decorei o horário que moia a estopa, os dias que descarregava o caminhão e ás vezes que precisava viajar para Santos.
Nunca ninguém desconfiou de nada porque quando nos encontrávamos na rua, eu fingia não lhe conhecer, mesmo com o peito explodindo de tanta felicidade.
Nisso sorria pra mim, dizendo que eu era uma criança adorável e que um dia seria uma grande mulher. Talvez a sua.Ás vezes me chamava do lado e com uma voz mansa que mais parecia um sussurro, me falava sobre o amor .Dizia que para se amar não precisava ser especial, bastasse ser simples, pois o amor ilumina a alma, supera qualquer obstáculo, acende a esperança e dignifica o sorriso numa prece de luz!
E você me ensinou a ser dona de mim mesma, audaciosa e determinada em minhas atitudes, mas generosa com as pessoas.
Depois puxava minhas tranças e corria , mandando beijos no ar. Beijos que eu aprisionava dentro de mim para que não se perdesse no tempo.E dessa maneira simples conseguiu me ensinar tudo sobre o amor .Minha bola caiu no telhado da Dona Ana e tentei pegar, subindo no muro.A molecada toda esperava lá embaixo.Foi quando escorreguei, caindo direto em seus braços.Apertou o seu corpo ao meu, fazendo uma jura secreta:
- Quando crescer, vou me casar com você!
Corei de vergonha, acreditando em cada palavra.Muitas vezes tentei lhe esquecer, mas a nossa rua fina e comprida me levava apenas ao horizonte dos seus olhos.
Era uma vila que formigava italianos que riam o tempo todo com suas sacolinhas rechonchudas de frios.Tá louco, como comiam! A gente lá de casa não era assim e eu achava deselegante uma moça mastigar na frente do namorado...Por isso escondia farelos de bolacha dentro dos bolsos e beliscava bem depressa, mexendo a boquinha.Era cheia de dengos e trocava de roupa milhões de vezes ao dia.Queria uma sandália Melissa , uma vitrola, um tênis All Star...Eu não seria feliz sem eles.
Geralmente usava tranças e piroques presos no cucoruco, um tanto sensual .Mas aquelas abobadas da Moóca me achavam uma caipirona abelhuda e boicotavam tudo o que vinha de mim.Enrolavam os cabelos com grampos, correndo uma na casa da outra com um vidrinho de esmalte, mexericando sobre seus namorados motoqueiros.
Na época, o que eu mais queria era ficar forte, com pernas de madeira, tetas gordas e bunda do tamanho de uma almofada .Você tinha um cabelo engomado durante horas por um secador portátil e usava sapatos mocassim preto, deslizando feito um frango frito nas pistas da falecida Bumerang Nigts Clubs.Jogava no time da Mooca, era paquerador, trabalhador e acordava com as galinhas.Com todas as galinhas da cidade!
Então eu fazia um milhão de amigos para que pudessem falar alguma coisa de você.Para mim era importante ouvir o seu nome, percebendo que a italianada lhe queria muito bem .Sabia todos os hábitos de sua família, inclusive primos e parentes distantes.Era a noivinha dourada e extremamente simpática ,até mandando beijos estralados para sua tia Maria quando ia pro bingo na cidade .
Fevereiro de 1982, o asfalto trincava de tanto calor e eu tremia ao ouvir a sua voz.Passava na sua frente como um trator o dia inteiro, sem lhe encarar.Ia no açougue do ANTERO, voltava rapidamente mudando o estilo do penteado, o batom, a roupa.Ia até o bazar da Dona Iolanda perguntar o preço de tudo, depois corria de volta retocando a maquiagem num fôlego só.
Ao mudar-se para os fundos da minha casa, fiz um buraquinho no muro somente para poder espionar suas roupas penduradas no varal. Conhecia todas elas e cheiravam à estopa molhada .Era um cheiro natural, de homem batalhador que transpirava muito.
Eu não comia mais, não dormia e sentia febre todas as vezes que lhe via dando um ¨malho¨naquelas gostosonas da Mooca , entupidas de fogazza e pizza de alithe.
De repente numa manhã ensolarada acordei com peitos maravilhosos que me fizeram usar sutiã florido, com as alças escancaradas nos ombros para que todos pudessem notar a diferença.Já não era a mesma criançola da noite anterior.Era mocinha!
Passei um batom uva choque e pulava amarelinha com vestidos de renda, num charme só.
Guardei as rodinhas do carrinho de rolimã num saco plástico, aposentando de vez tanta breguice.
Atrás do buraquinho do muro conseguia ver o seu pai comendo queijo com vinho e o mais importante...conseguia encarar seu rosto perfeito de pertinho, sem parecer atrevida demais , decorando cada contorno dos lábios, a extensão da pele e o formato dos olhos, que sorriam sem querer sorrir num poema de amor .
Naquela época você estudava engenharia eletrônica na Fundação Getúlio Vargas, se deitando no assoalho com os livros espalhados ao redor das pernas.Fazia cálculos com um toquinho de lápis, enquanto eu ficava imaginando ali do outro lado do muro o quanto poderíamos ser felizes nesta vida.E não fomos.
Talvez porque pensei muito no futuro, investi nos meus sonhos, me esquecendo de viver o momento.
Época de quadrilha feita nas ruas,onde nos reuníamos picando bandeirolas e cozinhando pinhão.
Tudo era motivo de alegria e ríamos alto.Música no último volume, beijos estralados e um carinho falado, transformando qualquer momento numa festa.
Alguns anos se passaram e você tinha um quilo de namoradas ricas, bonitas e cheias de modernidade.
Sua beleza encantava a todos e era tamanha bondade que o tornava cada vez mais divino, inatingível e sublime, feito um foco de luz.
Continuava a trabalhar com o pai na fábrica de estopa e logo cedo passavam abraçados em frente ao meu portão.Eu já estava de roupa nova, penteada e perfumada, fingindo varrer a rua.Durante anos foi assim e talvez você nunca percebeu que estava bonita para lhe ver, para que sentisse orgulho de mim! E fazia muito gosto se tomasse o café da manhã comigo, pois conversávamos bastante enquanto servia suco de laranja com bolo de fubá.
Era o meu único amor.O meu irmão.O meu amigo.O melhor de todos! E rezava uma ladainha pedindo que eu fosse uma boa menina, responsável, estudiosa e digna.Tudo o que aprendi de mais bonito, foi com você.Comecei a ser feliz porque você também era.Como você beijava as criancinhas da rua, dava gargalhadas gostosas, chamava as italianas de belas e queridas!Queria ser igual, para conquistar o seu coração.Nisso deixei de ser aquela sonsa emburrada, cheia de complexos e esquisitices para me tornar sua belona ; uma moça alegre ,divertida e de bem com a vida.
Enfeitávamos a rua com bandeirolas coloridas e flores de verdade.Ali era a nossa casa. Colocava duas fichas no orelhão da esquina, apenas para ouvir a sua voz.Nunca me identifiquei, mas era assim que me sentia cada vez mais perto de você.
Tive rubéola, foi me visitar.Fiquei doente de tanta paixão, me deu um beijo na testa...Precisava de um namorado, foi meu amigo ...
E os nossos encontros se tornavam cada vez mais freqüentes , mil vezes aos dia .
Durante horas observava o seu corpo forte, moreno e suado rolando na cama.Fui até sua casa e queria me declarar.Aquele sentimento todo me devorava por dentro...E ao me ver dentro do seu quarto,tímida e sem jeito, me abraçou rápido, cochichando no meu ouvido:
- Eu amo você.Sei que não podia, não devia...Mas fica comigo...Você é minha!
O tempo passou cada vez mais depressa e a nossa rua encantada falava sobre nós por todos os muros, postes e calçadas. ...Então abaixou os olhos me contando que já não era mais o mesmo.Como assim?
Suas idéias se confundiam com palavras sem nexo e a única coisa que entendi era a tristeza que desabava numa lágrima de despedida; não queria mais viver neste mundo e disse que precisava ir embora para bem longe dali . Dedilhou com carinho as curvas do meu rosto, se despedindo num beijo rápido e confuso.
De repente caiu uma tempestade inesperada e as ruas da Mooca foram se desencantando num passe de mágicas.Não ouvi mais a sua voz e nunca mais foi me ver .Ao som de gritos eufóricos da molecada enrolou-se até o pescoço com um cobertor xadrez,enterrando-se em sua própria cama durante meses.
Foi embora e me deixou morta de saudades.Não era mais o mesmo.Não era mais nada e uma coisa louca tomou conta de você, de seus pensamentos e da nossa vida.Começou a mudar os móveis de lugar, a colecionar palitos de fósforos queimados e tampinhas de refrigerante amassadas.
Depois pulava com a rapidez de um menininho assustado, dormindo no banco da praça. Qualquer canto era o seu canto.Entrava no quintal dos vizinhos , catava bituca de cigarro do chão e enlouqueceu assim, de repente .
Um monstro cabeludo tomou conta do seu corpo, distorcendo as idéias e lhe deixando completamente perdido.A fábrica ficou de luto e eu morri com você.
Não sabia nem o próprio nome, nem o meu, nem o de ninguém .Um silêncio estranho tomou conta da nossa rua e as pessoas sussurravam ao mesmo tempo, com muito medo que se perdessem nos próprios pensamentos.
- Ele PIROU !
Alguns amigos foram lhe visitar, fizeram novena, promessa e oração.Mandei-lhe uma carta.Devolveu.Mandei-lhe chamar.Se fez de surdo.
Gritei por você desesperadamente , pedindo que não me fizesse sofrer tanto assim...
E com o passar do tempo foi se tornando apenas mais um problema social.Estava louco e quase enlouqueci também.
Era o começo do fim...
Fazia exatamente dois meses que não lhe tocava, um milhão de minutos que não ouvia a sua voz e uma alma penada me perseguia na imensidão da nossa rua...E eu no mesmo portão; a Adriana brincando com o papagaio, o Jéferson treinando boxe, o Dede comendo pão com mortadela, o som de Raul Seixas no último volume, a Cecília pulando corda, o Alexandre rindo alto...Tudo estava perfeitamente no mesmo lugar, menos você .
Bendita rua maldita!
Subi definitivamente cada degrau daquela casa que abrigava todos os nossos devaneios e encarei seus olhos perdidos em mim, porém vagos, inertes, mudos ...Eu tremia por dentro e a minha maior vontade era de engolir o seu coração para que pulsasse dentro de mim.Iriam interná-lo numa clínica psiquiátrica e já haviam chamado a viatura, sem piedade alguma .
- Silvana? Regina?
Sentei-me ao seu lado,pedindo que fugíssemos .
- Um dia você me prometeu que se casaria comigo.Já se passaram quatro anos e eu não me esqueci.Hoje estou me casando com você .Juro que estarei contigo em todos os momentos de sua vida.Na alegria e na tristeza.Na saúde e na doença.
- QUEM É VOCÊ ?
- Sou aquela que lhe tem AMOR .
E o levaram amarrado numa camisa de força diante da nossa rua encantada. Encarou a todos com muita vergonha , tropeçando nos próprios chinelos . Foi embora mais uma vez levando consigo o meu desespero.
E com os lábios tremendo de raiva, gritei pro mundo inteiro ouvir, parando as pessoas com minha dor: - eu vou te buscar!
Mas o mundo se fez mudo.Você não se encaixava num quadro social, não tinha mais fim e nem fundo.Era uma vergonha e precisava ser isolado para bem longe daquelas famílias normais.Mas eu sim tinha vergonha de todos eles , que o magoaram daquela maneira tão anormal.
Sou tua companheira, tua sombra e tua imaginação. Estarei contigo em qualquer época e em qualquer mundo.Bendito seja o teu nome !
Ficou internado durante três meses naquela clínica e fui lhe visitar sorrindo, fingindo não chorar.Era apenas uma criança e já lhe taxavam de esquizofrênico .Fingi não ver o cabelo talhado por um canivete , o rosto sem expressão devido ao excesso de psicotrópicos, a umidade no canto dos olhos...Estava muito inchado,dopado, magoado! Porque entre nós agora tinha o muro de uma Clínica psiquiátrica , um jardim florido e um portão separando o meu mundo do seu .Eu poderia lhe visitar, lhe dar de comer e fazer um agrado, mas depois iria embora ; abrir o portão de saída com um aceno distante , virar as costas e simplesmente voltar á minha realidade .
Talvez quem sabe um dia os hospitais psiquiátricos tenham um jardim florido, mas sem muros e com os portões sempre abertos, como braços de mãe.
Pobre menino rico, não tinha mais nada .Sua melhor roupa continuava sendo um pijama furado e nas noites de frio o cobertor xadrez lhe abraçava num gesto de carinho .Da mesma maneira que o envolveu com muito respeito na noite que o acharam morto, sem ninguém.Talvez o único que estivesse sempre presente, quando todos se fizeram ausentes !
Há muito tempo que havia deixado de ser o orgulho do papai e foi esquecido .Só tinha a mim e nem sabia ...Queria enlouquecer com você, tomar o seu remédio e sentir a sua dor .
Adoeci também, louca de saudades.Urinava na cama, sem ter o que falar.Falar o quê, meu Deus?
Esperei que seu pai abrisse a porta da fábrica, assobiando uma cantiga de ninar.
- Por que o abandonou assim? Por que não lutou para que ele ficasse com a gente só um pouquinho mais?
Ele não soube me responder e nos abraçamos, misturando as nossas lágrimas.Naquele instante percebi que já era da família.
O mundo não ama os diferentes e não acolhe os
loucos .Que saudades de você!
Os médicos disseram que era esquizofrênico; que perdeu o ego .Por isto, somente por isto, os nossos nomes não têm valor nesta história.
Mas nesta vida a gente precisa aprender a cair sempre de pé . Nisso acordei com uma música forte que vinha da janela do seu quarto e estava lá, fazendo parte da decoração da cortina .
Acho que nem se lembrava mais de mim, de nós .
Meu Deus, estava de volta .A molecada jogava taco na rua e o tio do sorvete não cansava de buzinar em ritmo de festa .Fiz uma trança bem bonita, passei o mesmo batom uva choque e trepei no muro, lhe acenando num sinal de recomeço .
- Voltei ! – sorriu .
E com um giz de cera escrevi na parede que o amava como nunca, como nunca havia tido coragem em lhe dizer antes .Sorrimos e pronunciou o meu nome, num gemido sentido, sofrido ...Estava estranho, gordo e eu lhe conhecia com um olhar. Depois deste instante passou a ficar trancado no quartinho dos fundos e não falava com ninguém, apenas abria a porta para pegar o prato de comida que lhe deixavam no canto.
Esperei que todos dormissem, levando de presente um rádio que havia comprado em cinco prestações.Precisávamos de música, de alegria e muita gargalhada .Não queria me ver, não queria ser visto.Foi difícil conquistar a sua confiança e precisei sempre lhe falar a verdade .
- Estarei ao seu lado...Confie em mim!
Parecia um bichinho assustado, com muito medo que a qualquer momento uma camisa de forças pudesse roubar todos os seus sonhos o levando cada vez mais longe de casa.
Abriu a frestinha do vitrô, cobrindo o corpo com o cobertor xadrez.
_ TÔ tão feio!
Abaixou os olhos ,mais lindo do que nunca .
Passávamos o inverno inteiro naquele quartinho e aos poucos consegui lhe dar alguns momentos de alegria.Fazíamos amor com as palavras, com a alma e fizemos amor também com o corpo. Falava sobre a dignidade de se respeitar as pessoas e na verdade você me ensinou a ser uma mulher, acima de tudo, um ser humano muito MELHOR.
- Como pode, dizem que você é louco...
- Dizem porque não me conhecem. – sorria.
E hoje sei que poucos o conheceram como eu. Nunca aprendi tanto sobre generosidade, apenas com o seu exemplo de vida.
Ríamos alto e éramos felizes à nossa maneira; a mais simples do mundo.Estávamos namorando e ninguém sabia.Ali era a nossa casa, com apenas um vaso de barro, revistas usadas e um colchão velho.
As paredes eram desenhadas por corações que fazíamos com um batom, em juras eternas.
Numa noite estrelada cheguei e não estava me esperando como antes.Desapareceu por alguns dias e fomos encontrá-lo em outra cidade, todo descabelado e cheio de feridas nos pés.
Era outro surto ou sei lá o quê!
Ele era tão bom.Era moço, bonito, rico...Que mais? Era louco.Nada mais.
Pendurei bexigas no nosso quartinho apenas para comemorar a sua volta e depois li para ele uma história de ninar, tentando fazer com que dormisse no meu colo.Era o meu filhinho especial e muito amado. E se fosse o seu? Você o abandonaria nas esquinas escuras da própria mente?
Não queríamos mais ajuda de médico nenhum, porque eles poderiam entender tudo sobre esquizofrenia, mas não acalentavam os nossos corações.
- Você é linda!- dizia sempre.
Eu era linda pra você.Não sei se vai se lembrar, mas foi o meu único homem.Quando resolveu me pedir em namoro, com o consentimento dos meus pais, ajudei a lhe colocar a melhor roupa.Só que riram de nós e nunca me senti tão incapaz assim!Agora era o louco da rua encantada.Nada mais!
Então, voltou a se trancar no quartinho, que não queria que fosse mais nosso, e não quis me ver de novo.O seu dinheiro não conseguia comprar uma saúde quase perfeita, que não lhe deixasse com cara de bobo.Falava sobre as borboletas que voavam, inventava histórias que nunca aconteceram e fugiu, sendo encontrado dias depois em Aparecida do Norte.
Tínhamos um compromisso de honra e uma jura de fidelidade, por isso e muito mais não poderia lhe abandonar.Vomitava compulsivamente dentro de um balde, sentindo dores de cabeça devido aos remédios excessivos.Depois rasgava todo o pijama, chorando baixinho para que não sentisse a sua dor .
Talvez ninguém saiba, mas eu desisti do meu curso na faculdade apenas para ter mais tempo de lhe dar carinho, diálogo e um pouco de alegria .E mesmo que você conseguisse ser como qualquer pessoa, eu sabia que era a melhor de todas.
A minha família proibiu que nos encontrássemos.Era um sofrimento saber sobre o nosso amor! Então comprei um walk talk para poder conversar dos nossos quintais.E nos encontrávamos escondidos ao som de Roberto Carlos, dançando coladinho em cima do colchão.Eu fugia de casa para lhe procurar! Sua linguagem era esquisita, meia louca, mas nos entendíamos com os olhos.O seu humor variava a cada instante e muitas vezes me deixou sozinha para dormir nas ruas da Mooca.E eu fazia tudo para lhe prender dentro de mim! Um dia me amava, já no outro, me odiava! Era próprio da esquizofrenia, mas nunca nenhum médico me disse que seria assim.
Eu esperava seus pais saírem, as vezes tarde da noite e então eu atacava, pulando o muro.Já era a sua devota e quando me ignorava, tinha febre e dores no peito.Nisso pichava a parede da vizinha com um giz de cera:
- Excelentíssimo Senhor, meu dono e soberano.Me dê a honra de tê-lo comigo, hoje e sempre.
Mas não colocava o meu nome, pois era uma moça bonita, inteligente e causaria muitos risos na vizinhança, se me mostrasse interessada pelo louco da rua.( pelo dono do meu coração).E no silêncio de nossos lábios, costuramos muitos beijos...
- O nosso filho vai se chamar Raphael.- eu dizia.
Meia noite, rojões no céu!Tinha festa na paróquia São Carlos.Sua tia Mafalda perguntava por você, desejando que fosse muito felizes.E faziam churrasco aos domingos convidando a molecada da rua, ao som de Zeca Pagodinho e do Bezerra da Silva.
Entrava em casa e se escondia debaixo da cama.Tomávamos banho de roupa e tínhamos muito pudor.Tínhamos apelidos horríveis e inventávamos nomes pra tudo.Amigos eram trutas.Ricos eram burgueses.Bater um rango era comer queijo com vinho.Menina era mina.Amor? Era o que fazíamos todos os minutos.
- Eu tenho medo de lhe fazer infeliz...
Mas eu nunca fui tão infeliz após a sua partida.
E num almoço de domingo, a minha família me comunicou que iríamos mudar para Ubatuba.Quase morri do coração!Todos se diziam envergonhados com o nosso romance.Como assim? Quando? Por que? Mas, e nós? Nós nunca existimos pra ninguém.Tentei explicar que eu tinha um namorado.Quem? O louco.E riam novamente.Você nunca foi louco, apenas me fazia feliz .
Rapidamente os moveis foram empilhados no canto da casa e senti que nada tinha mais sentido.Fui lhe procurar pedindo que ficasse comigo, mas me mandou embora .
- Eu não sirvo pra você!
Eu só queria que me ensinasse tudo novamente, nada mais .Não me importava se não usasse relógio , porque para você o futuro não existia .Não me importava se não sabia nada sobre política, novela, dinheiro... Nenhum normal conseguiria me fazer tão feliz como fui ao seu lado!
Fiz uma trança bem bonita e lhe esperei durante dias sem fim.Não ouvia mais as nossas músicas e padecia sozinho no quartinho escuro.Estávamos cada vez mais doentes e eu decidi fazer a sua última vontade.Mudar de cidade, de nome, de rua.Você, nunca mais!Que saudades de você.
Senti que algo estava mudando dentro de mim.Estava grávida e não sabia.Só sabia que não poderia ir embora sem você .Desesperadamente fui lhe procurar no mesmo quartinho e assim nos abraçamos feito loucos, fazendo cumprir a nossa promessa de amor eterno.Não conseguia dizer nada e dentro da mais alucinada paixão, pediu com as mãozinhas postas numa prece:
- Não me deixe!Um dia eu prometi que me casaria com você .
Como eu poderia lhe deixar se era o meu melhor amigo, o pai dos meus desejos e principalmente do meu filho?
E assim nós nos casamos no mesmo mês ,numa manhã de sábado .Tínhamos de tudo, menos saúde.
Com o tempo teve outros surtos esquizofrênicos e as pessoas riam muito do seu jeito esquisito.Diziam que estava endemoniado, depressivo, drogado...Desparafusava o chuveiro, catava palitos do chão, mexia em tudo ...e eu chorava de medo.Não queria que o levassem para uma clínica psiquiátrica, numa camisa de forças.De novo, não.Odiava o mundo porque ele não nos aceitava .Fizemos novenas, promessas, fizemos amor para que tudo se transformasse ...Fomos nos isolando dos outros para que não nos magoassem.Queria apenas que conseguisse conversar, como qualquer outra pessoa.
Não tomava banho, não se arrumava.Não me fazia mais feliz.Eu não conseguia compartilhar a sua vida e a nossa sala de dois ambientes repletos de quadros, você nunca se enquadrou em nenhum.
Quantas vezes choramos juntos!
Vivemos oito anos juntos e nos amávamos cada vez mais , apesar de você não sair do quarto, mudar os moveis do lugar,as vezes não saber o meu nome ...
Perdão se não fui o suficiente para você .
Perdão se não consegui lhe aprisionar no meu mundo, porque numa tarde de verão, daquelas como um dia nos reconhecemos no meio do povo você veio do nada e me deu um beijo na testa ...
- Obrigado por tudo . – deixou escapar uma lágrima do canto dos olhos- EU NÃO CONSIGO mais viver assim ...Preciso ir embora.
- De novo, não.Fica comigo.Você vai pra onde?
- Eu não posso .Não chora...você vai ser muito feliz! – e nos abraçamos forte.- Obrigado por tudo.
E no outro dia não houve mais dia porque você se foi, assim como veio, simples e silencioso feito os Grandes Mestres do Amor ...Morreu sozinho como sempre esteve, com uma cartela de psicotrópicos na mão e uma foto minha e dos meninos no bolso do pijama .Parada cardíaca ! Era noite de 09 de novembro de 1997, véspera do meu aniversário e morremos juntos.Noite que a Mooca chorou com o meu grito de desespero .
- Fábio, fica ...só um pouquinho mais.
Foi enrolado no nosso cobertor xadrez e desfilou por cada canto da nossa rua encantada, desencantando todos os muros, todos os postes, todas as pessoa.
Tenho certeza que deste momento você se lembra, porque foi o último .Seja feliz!
Você foi levando consigo toda a rima das cantigas italianas, o odor dos temperos picantes e o verdadeiro sentido da vida .
Talvez hoje não se recordam mais de você ...A nossa casa já foi alugada para outras pessoas que não lhe conheceram ...Eu me casei novamente,resolvi escrever livros , tenho outro filho e uma outra pessoa que sabe ver as horas, conversar normalmente, falar sobre política e religião.Mas a sua alma está aqui sempre comigo, me embalando, em cada palavra desta história que você nunca conheceu de verdade .E você foi, sumindo feito uma estrela cadente.O colorido desbotou de repente como uma chuva forte, sem deixar vestígios .Foi ...feito um andarilho do Universo, deixando um vazio aqui e ali . Por todos os lugares onde esteve .
E aonde estiver tenha a convicção que estarei lhe esperando, sentadinha na calçada da nossa rua, usando tranças caídas no ombro e de braços abertos num abraço, esperando apenas um recomeço .
Á você que me cativou neste AMOR infinito ofereço toda a minha Eternidade .
O verdadeiro amor ultrapassa o infinito se instalando dentro da alma, que transcende, dignifica e ilumina o ser humano .Porque o AMOR não exige, conquista .Não critica, perdoa .Não aniquila.Renasce.O amor não escraviza jamais .Ele liberta de todas as opressões, omissões, devastações.DOA-SE sem limites, por um minuto, por um dia ou para sempre .
Hoje sorriu também com a certeza que aprendi com você a ser uma grande mulher .AGORA curvo minha alma devota para que sua luz possa passar, meu eterno amigo Fábio Retti.Ainda amo você !
SILMARA TORRES RETTI

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